Oração dissonante



A Astor Piazzola

Os artistas não deviam morrer.
Ia dizer, os grandes artistas,
mas, não, pensando bem,
todos os artistas,
mais que um, mais que cem,
até o mais canhestro, o mais mambembe,
o burlesco, o pastelão, todos, sem exceção.
Mas, no palco, marcando a ausência,
marcando a ausência de cadência,
as costas lisas do contrabaixo de pau,
brilhando no que resta da luz dos refletores,
apoiado, como um ator alquebrado,
na branca sequência das teclas tônicas do piano,
como um velho marujo sentado
em barril de Amontillado,
histórias extraordinárias de Poe, estranha nau.

Deslocada mesmo, só a caspa
no ombro esquerdo do sobretudo escuro,
aspa sombreada, tijolo, asfalto, muro,
que nem o vento cortante das esquinas nuas
dos fôlegos cantantes das estampas cruas
das noites de Buenos Aires em julho,
foi capaz de dissipar, de separar de todo lixo,
de todo entulho, mantendo a pompa
e a elegância, mantendo a circunstância
da estação portenha, da estação polar.

Adeus, Nonino, adeus!
Que Deus o tenha
no suor que vertes em notas de todas as cores.
Que o bandoneon te acompanhe sempre,
sempiterno, não importa para onde fores,
não importa em que plagas, em que algas,
não importa em que cicatrizes ou em que chagas,
em que claves, em que harmonias,
em que ausências, em que sequências
e em que constâncias, em que fantasias,
em que tonalidades, em que dissonâncias.
Adeus! Adeus, Nonino, adeus!

Um abraço carinhoso para todos vocês,amigos de sempre,



Sergio Perazzo

serzzo@terra.com.br

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